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Enquanto o debate sobre o trabalho análogo à escravidão frequentemente se concentra em campos agrícolas, carvoarias e canteiros de obras, uma de suas formas mais insidiosas prospera à sombra da intimidade do lar: a escravidão doméstica. Oculto atrás das portas fechadas de residências, este crime (art. 149, do Código Penal) assume uma dimensão particularmente cruel, mascarado por relações de afeto fictício e pela naturalização histórica da exploração do trabalho doméstico, que perpetua ciclos de vulnerabilidade e subjugação.

A ocorrência de trabalho análogo à escravidão no âmbito doméstico é caracterizada pelas mesmas violações previstas na lei: condições degradantes de vida (como o famigerado “quartinho da empregada”, sem ventilação ou privacidade), jornadas exaustivas que se estendem por até 17 horas diárias, trabalho forçado com a retenção de documentos e a proibição de sair da residência, e a servidão por dívida, com a manipulação de supostos débitos por alimentação, transporte ou adiantamentos.

O que torna este cenário singular e profundamente complexo é o seu enraizamento em estruturas sociais perversas. A exploração doméstica é herdeira direta de um passado colonial e escravocrata, que durante séculos naturalizou a ideia de que certos grupos sociais – predominantemente mulheres negras e pobres – estariam destinados a servir. Essa herança cria um ambiente onde a exploração é frequentemente velada por um discurso de “relação familiar”, que mascara o abuso e dificulta a denúncia. A vítima, isolada do convívio social e, muitas vezes, longe de sua família e rede de apoio, vê sua dependência emocional e econômica ser usada como instrumento de controle.

A fiscalização desse crime esbarra em enormes obstáculos. A inviolabilidade do lar, um direito fundamental, torna-se uma barreira para a ação do Estado. A menos que haja uma denúncia ou flagrante, os auditores-fiscais não podem adentrar os domicílios. As vítimas, por sua vez, temem represálias, acreditam não ter para onde ir ou são coagidas pela dependência econômica e emocional. Muitas sequer se reconhecem como vítimas de um crime, tamanha a naturalização de sua condição de exploração.

As estatísticas oficiais trazem apenas uma fração do problema, mas são igualmente reveladoras. Entre 1995 e 2023, o Brasil resgatou 62.537 trabalhadores em condições análogas à escravidão, segundo dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho. Deste total, o trabalho doméstico representa cerca de 1,5% dos casos identificados, com aproximadamente 937 trabalhadores resgatados.

Entretanto, estes números são apenas a parte visível de um iceberg muito maior. Especialistas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Ministério Público do Trabalho alertam que a subnotificação no trabalho doméstico é especialmente aguda. Enquanto nos setores rurais as operações de fiscalização podem resgatar dezenas de trabalhadores de uma só vez, no ambiente doméstico cada caso envolve geralmente uma única pessoa, tornando a identificação exponencialmente mais difícil.

Os dados disponíveis pintam um retrato consistente: a maioria esmagadora das vítimas são mulheres (88%), negras (78%), com baixa escolaridade e oriundas de Estados economicamente vulneráveis. Entre 2017 e 2021, apenas 2% das operações de resgate conseguiram acessar residências particulares, segundo levantamento do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo.

O enfrentamento do trabalho escravo doméstico exige, portanto, uma estratégia específica e sensível. É urgente romper o “pacto de silêncio” a partir da formulação de campanhas de conscientização, fortalecer canais de denúncia, ampliar a fiscalização proativa e combater as causas da vulnerabilidade

Enquanto uma trabalhadora doméstica for submetida a condições desumanas, privada de sua liberdade e tratada como uma propriedade, a abolição será um projeto inacabado. É preciso ter a coragem de olhar para dentro de nossos próprios lares e desmantelar, de uma vez por todas, a herança escravocrata que ainda habita, silenciosamente, entre quatro paredes.

Guido Tiepolo

Advogado Trabalhista Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da OAB/Niterói Membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)

Advogado Trabalhista Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da OAB/Niterói Membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)