
Não é nenhuma surpresa o fato de que, no Brasil, as plataformas de trabalho online controlam diretamente milhões de trabalhadores, sem, contudo, reconhecer direitos fundamentais e com mínima intervenção do Estado. O grande monopólio do mercado, controlado por poucas plataformas, proporciona um ambiente propício para a exploração dos trabalhadores em um setor que se expandiu rapidamente no país nos últimos anos.
Segundo uma pesquisa da rede Fairwork, da Universidade de Oxford, entre 2021 e 2024, o número de trabalhadores em plataformas digitais saltou de 1,53 milhão para 2,3 milhões no Brasil — um crescimento de 48%, segundo análise de tráfego digital feita pelos pesquisadores. Portanto, em apenas três anos, a quantidade de trabalhadores sob controle de plataformas digitais aumentou de forma proporcional mais do que qualquer outro setor da nossa economia.
O mesmo estudo estimou que a Uber, sozinha, concentra cerca de 900 mil motoristas ativos no país, o que faz do Brasil o segundo maior mercado da empresa no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Esse panorama revela um aumento da situação de trabalho fragmentado, precário e fortemente regulado por algoritmos. O que é alarmante é que são esses sistemas que alocam tarefas, estabelecem objetivos, aplicam penalidades e, muitas vezes, determinam quem pode ou não prosseguir no trabalho. Em outras palavras, é um sistema patronal tradicional, porém sem a presença física do patrão.
Recorrentemente, as empresas que atuam em plataformas digitais usam o argumento da liberdade econômica e da suposta inovação tecnológica com o flagrante intuito de burlar as leis trabalhistas. Conforme se depreende da prática, a estratégia dessas empresas consiste em estabelecer áreas nebulosas onde não se pode definir claramente o que é ou não uma relação laboral.
Esse fenômeno, denominado ‘uberização‘, na verdade, é o resultado de décadas de precarização, com a supressão de direitos e garantias. Isso aconteceu, principalmente, com a eliminação de limites sobre jornadas e remuneração, assim como a transferência de custos e riscos do trabalho para o próprio trabalhador. Desta forma, trabalhadores estabelecem para si metas cotidianas de remuneração que garantam sua sobrevivência, mas os meios para alcançar tais metas estão nas mãos das empresas.
Na realidade, os empregados estão disponíveis para o trabalho, porém estão sujeitos a critérios de distribuição obscuros ou informais, sujeitos a variações no preço do trabalho e podem ser potencialmente penalizados sem critérios claros. No mesmo sentido, é preciso ter em mente que a ausência de regulação não é um descuido, mas parte do modelo de negócio das plataformas. Em vez de se adaptarem à legislação, essas empresas exploram as lacunas legais para expandir mercados, transferindo os custos do próprio negócio aos trabalhadores.
Em relação à jurisprudência trabalhista, particularmente no Tribunal Superior do Trabalho, apesar de existirem decisões que reconhecem a relação empregatícia entre trabalhadores e plataformas, a esmagadora maioria das decisões ainda sustenta a teoria da autonomia contratual, ou seja, negando os vínculos.
O Projeto de Lei Complementar 12/2024, proposto pelo Governo Lula no ano passado, sugere que os motoristas de aplicativos sejam considerados autônomos, tendo direito à Previdência Social. Já o Projeto de Lei 2479/2025, do Deputado Federal Guilherme Boulos (PSOL), propõe uma tarifa mínima para serviços de entregas e algumas regras de proteção do trabalhador, independentemente da existência ou não de vínculo de emprego. A toda evidência, tais projetos buscam garantir um mínimo de proteção, como tarifa base, indenização de custos e direitos previdenciários, frente a um modelo que impõe precariedade sistemática desde sua chegada ao país.
Inegavelmente, é necessário que se estabeleça um conjunto de diretrizes para políticas públicas para o setor. Entre elas, poderia ocorrer a incorporação periódica de dados sobre o setor nas pesquisas do IBGE, a obrigatoriedade de transparência por parte das empresas, com divulgação pública do número de trabalhadores ativos, e a ampliação da proteção previdenciária a todos os trabalhadores plataformizados, inclusive os que atuam em regime remoto.
Tratam-se de respostas a um dos maiores desafios contemporâneos no mundo do trabalho: o combate à precarização estrutural promovida pelas plataformas digitais no Brasil. Um modelo que, sob o discurso da inovação e da flexibilidade, nega direitos básicos, transfere riscos para os trabalhadores e concentra poder econômico e algorítmico em poucas empresas, enquanto o Estado falha em regulá-lo adequadamente.
A chamada “uberização” não é inovação, mas a modernização da exploração, com roupagem digital. Enquanto o Estado não intervir para garantir direitos mínimos, o Brasil seguirá como um laboratório de precariedade para essas empresas. “O que chamam de flexibilidade é, na verdade, a liberdade das empresas de precarizar; o que chamam de autonomia é a solidão do trabalhador diante do algoritmo.” (Adaptado de Boaventura de Sousa Santos).