O artista visual Marcelino Melo, também conhecido como Quebradinha, ouviu o termo etnogênese pela primeira vez em um espetáculo teatral. A palavra despertou curiosidade. Ao descobrir seu significado, essa faísca se transformou numa pesquisa que começou em março de 2023 e que entrou em profunda simbiose com o trabalho do artista. Agora, o termo se torna “Etnogênese – O Que É e O Que Pode Ser”, título da sua primeira exposição individual, que reúne 43 obras, entre quadros, vídeos, fotografias e instalações e que terá abertura dia 7 de setembro, no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, o MAC, com curadoria de Luiza Testa, Patricia Borges e de Emicida, este último, em sua primeira incursão no mundo da curadoria.
A exposição ficará em cartaz até 24 de novembro, dividida entre o prédio principal do MAC Niterói e a sua unidade localizada no Morro do Palácio, o MACquinho. “Etnogênese” também vai se relacionar com a comunidade e propor ações educativas para os moradores. Na abertura, será apresentada uma performance inédita concebida por Marcelino Melo, que começará no MACquinho e irá em direção ao museu.
Do lado de fora, haverá também uma grande instalação convidando o público a conhecer o universo das periferias apresentado pelo alagoano de 30 anos, nascido em Carneiros, cidade de apenas 8 mil habitantes no sertão de Alagoas e radicado em São Paulo.
Marcelino ganhou o apelido de Quebradinha por produzir um trabalho que remonta à arquitetura da favela. A partir da adesão do termo etnogênese, sua pesquisa ganha novas camadas e novas faces. Se debruçando, então, sobre o termo acadêmico, ele cria uma nova série de obras, que serão apresentadas pela primeira vez na exposição:
“A ideia era chegar na definição visual do que seria a etnogênese, a partir das periferias. As pessoas vão conhecer de perto um trabalho que elas já sabem que existe, no entanto, com uma nova proposta, em direção ao lúdico, ao afetivo, à memória e à territorialidade, não só das favelas, mas do interno, do que nos habita”, afirma Marcelino.
Como o artista vê a etnogênese
O termo antropológico etnogênese é utilizado de diversas formas no universo acadêmico, a mais comum é para se referir a um processo de insurgência de novas identidades étnicas ou de ressurgimento de etnias já reconhecidas, pelo qual um grupo humano começa a ver-se a si próprio ou a ser visto pelos outros como um grupo étnico distinto.
“Eu chego nessa palavra, a partir da busca por uma estética menos subjetiva do que as casas, com que eu já trabalhava. As casas falam de violência de uma forma muito sutil. Na etnogênese, eu quero explorar a figura do corpo que habita esses territórios, a visualidade desses corpos. Isso faz com que o trabalho se liberte da narrativa que já existe, para que se criem novas”, afirma.
Nas obras da nova série, pessoas em favelas usam máscaras em formato de casa e a favela ganha, assim, vida e formato humano, transformando-se num ser que vem do barro, o que o artista vem chamando de faces.
“É como se as casinhas fossem o casulo e o casulo abrisse e surgissem esses personagens que vou apresentar agora em diversos formatos. Com a etnogênese, eu trago esse ser, feito de barro, essa representação do ser periférico”, revela Marcelino.
Sobre a escolha de um termo acadêmico para representar um trabalho tão real e popular, a curadoria relata:
“Como curadores dispostos a alcançar um público que não necessariamente é assíduo em museus, decidimos não subestimar essa população. Sabemos que, se fizermos nosso trabalho bem feito, conseguiremos ajudar Marcelino a popularizar o termo ‘etnogênese’ e a criar uma identificação entre as pessoas e as obras. Esperamos que o público, de forma geral, se veja representado e refletido nessa exposição”, diz a curadora Luiza Testa.
Emicida faz sua primeira imersão no mundo das Artes Visuais
Convidado por Patricia Borges e Luiza Testa para ser um dos curadores da exposição, Emicida e Marcelino se conectaram de imediato.
“Eu e o Leandro (Emicida) somos amigos há muitos anos e sempre tivemos essa troca em relação à arte. Foi ele quem me apresentou o trabalho do Marcelino depois de ver uma obra exposta no CCSP. A partir daí, conheci o Quebradinha e começamos a trabalhar juntos. A sintonia entre os dois é muito grande e não existiria pessoa melhor que o Emicida para estar com a gente nessa exposição”, afirma Patricia.
Já Emicida vem aprendendo com as curadoras, com Marcelino e espera criar um ambiente provocativo para novas reflexões:
“Sinto que meu papel aqui é ajudar em tudo o que for possível para que possamos fazer a experiência da exposição ser linda, provocativa, contemporânea fugindo de qualquer clichê. Marcelino já tem uma arte que conversa com um mundo que está além das galerias e museus, talvez nossa luta aqui seja criar uma bela intersecção entre esses dois mundos, com toda a verdade de ambos, que faça as pessoas saírem da exposição se perguntando se favelas já não deveriam estar nos museus, em todos os sentidos”, diz.
A música também é parte das referências e inspirações de Marcelino para a criação da nova série, pois durante o processo de pesquisa, ele mergulhou de cabeça no universo de artistas como Chico Science, Nação Zumbi e Racionais MCs. A ideia de confluência de Nego Bispo, a literatura de Carolina Maria de Jesus e a canção “Zé do Caroço”, de Leci Brandão, nome que ainda dá título a uma das obras, também compõem o universo de inspirações do artista.
O barro como um conceito que gera vida
Desde antes de criar as Quebradinhas que o tornaram conhecido, Marcelino já tinha uma relação criativa e afetiva com a ideia do barro, tão presente no universo periférico.
“O barro está na parede e no chão nas comunidades. Já em bairros nobres, está no telhado. Pensando nisso, eu começo a tratar o barro como se ele fosse a base. Ele é o mesmo, um ser só, o barro que dá vida a outras formas, sejam elas o corpo ou as casas. O barro é a base até mesmo para a cor. Por ele ser laranja, eu costumo pensar muito que o ser periférico é muito semelhante ao barro. Pensando nisso, o barro é meu norteador”, explica o artista.
No sertão de Alagoas, Marcelino brincava com o barro quando criança, isso também traz uma relação afetiva e de inspiração com o material.
“Eu não tenho essa ideia do barro como algo ruim, um empecilho, uma sujeira, algo que suja a roupa e os pés. O barro, para mim, tem a ver com território, com afetividade. Uma das minhas avós era paneleira, fazia panela de barro. Ele me conecta com o meu trabalho e com as minhas memórias, me faz pensar que o Brasil, grandão que só, é muito conectado, muito próximo, pequeno e grande ao mesmo tempo”, reflete.
A violência e a ousadia ganham lugar nas obras
Conhecido por abordar de maneira muito sutil a questão da violência em suas obras, desta vez, Marcelino apresentará uma obra em que o tema aparece com mais destaque.
“De maneira geral, o meu trabalho sempre vai no caminho do singelo, da sutileza mas desta vez, trago uma pistola pendurada em uma das obras, vai na ideia de ‘o que é e o que pode ser’. Ela estará incluída numa instalação que tem diversos objetos e terá uma interpretação ambígua, pois a arma faz parte da construção do imaginário do ser periférico, seja como um agente do Estado, para matar, ameaçar ou, na mão do favelado, quando ela ganha outra conotação: ‘entre o corte da espada e o perfume da rosa’. Eu deixo essa interpretação à escolha do público”, adverte.
Também se destacam, entre as obras, duas peças que são táteis e sensoriais. Todas terão audiodescrição e a altura das obras terá o menor padrão de altitude, para que crianças e PCDs possam ter acesso com mais facilidade.
“Etnogênese – O Que É e O Que Pode Ser” conta com Patrocínio Master da LN Urbanismo, Vista Verde, Sandi Hotel e Arte Wall.
Marcelino Melo
Marcelino Melo ou Nenê, 30, é um jovem nascido em Alagoas e residente da zona sul de São Paulo. Produtor audiovisual, fotógrafo aéreo, educador e artista, transita por diferentes áreas da criação e do conhecimento. Seus trabalhos direcionam para um olhar descentralizado e na perspectiva de desconstruir narrativas, tendo as periferias como centro de suas obras e criações. No campo das artes visuais, Quebradinha surgiu em 2019, e é uma série de esculturas feitas a mão a partir de materiais reciclados que reproduz em miniatura a vida periférica, através de elementos simples e essenciais que carregam histórias, gerando um olhar crítico e afetivo principalmente para quem vive as periferias e suas manifestações. Desde então o artista já circulou diversos espaços, como a exposição “Um Brasil para os Brasileiros”, em 2021 e 2023, no Instituto Moreira Salles, Sesc SP e MAR Rio, “intersecções”, 2022 a 2024 no Museu da Cidade de SP, “Escrevendo o hoje para que o amanhã não fique sem ontem” 2022 a 2024 no CCSP entre outras. Também foi destaque em veículos da mídia. No trabalho com fotografia aérea que realiza desde 2015, entre as diversas produções destaca-se a série Código de Barras, produzida em 2020, onde o fotógrafo acompanhou a evolução da covid-19 nas periferias a partir do cemitério Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo, registrando a mudança da paisagem periférica. No audiovisual esteve presente em trabalhos de diversos artistas como Liniker, Mano Brown, Djonga, Rashid, além de obras no cinema e streaming, entre outros.
- Etnogênese – O Que É e O Que Pode Ser
- Abertura: 7 de setembro de 2024
- Visitação: de 7 de setembro de 2024 a 24 de novembro de 2024
- Local: Museu de Arte Contemporânea de Niterói
- Endereço: Mirante da Boa Viagem, s/nº, Boa Viagem, Niterói – RJ.
- Horários: de terça a domingo, das 10h às 18h (entrada até as 17h30)
- Ingressos: R$16 (inteira) e R$8 (meia-entrada)
- Os ingressos podem ser adquiridos na bilheteria, ou pelo Sympla
- Link: https://site.bileto.sympla.com.br/macniteroi/